Roberta Elzy Simiqueli de Faria
Atualmente, vislumbram-se inúmeras discussões em torno da possibilidade de renúncia à regra da impenhorabilidade do bem de família, mormente ante o fato de que alguns devedores oferecem o bem de família em garantia de dívidas, no processo executório, seja no ato da penhora, seja em transação homologada em juízo.
Alguns tribunais pátrios defendem a tese de que, uma vez renunciado o direito outorgado pela Lei 8009/90, perde o devedor a possibilidade de argüir este diploma legal em sua defesa, sendo plenamente eficaz a expropriação do bem de família.
Em que pesem as mais respeitáveis opiniões nesse sentido, entendemos não ser possível a renúncia ao direito de impenhorabilidade do bem de família, por se tratar de norma de ordem pública e, portanto, por afigurar-se, na hipótese, a indisponibilidade do direito.
Nessa seara, defendemos a nulidade do ato pelo qual o devedor oferece o bem imóvel destinado a residência permanente da família em garantia de uma dívida, no momento da penhora ou em qualquer ato que implique transação.
Isto se dá, porque o ato não encontra respaldo legal, se apresentando com objeto ilícito, o que, possivelmente, acarretará sua nulidade absoluta.
Para embasar a tese a qual nos filiamos traremos, a seguir, a opinião dos mais ilustres doutrinadores e tribunais brasileiros.
O Ilustre doutrinador César Fiúza determina quatro requisitos para que um ato jurídico seja válido, quais sejam, o sujeito deve ser capaz, o objeto possível, o motivo lícito e a forma deve ser prescrita ou não defesa em lei. Nessa discussão, objeto possível seria aquele realizável tanto material quanto juridicamente.(1)
Para Caio Mário da Silva Pereira, a validade do ato, além de outras hipóteses, reclama condição objetiva válida, ou seja, "o objeto há de ser lícito. Se é fundamental na sua caracterização a conformidade com o ordenamento da lei, a liceidade do objeto ostenta-se como elemento substancial, essencial à sua validade e confina com a possibilidade jurídica, já que são correlatas as idéias que se expõem ao dizer do ato que é possível frente à lei, ou que é lícito." (2)
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Desta forma, subsume-se a renúncia à regra da impenhorabilidade do bem de família à hipótese de impossibilidade jurídica/ilicitude do objeto, tendo em vista que o objeto de transação judicial foi bem imóvel destinado à habitação residencial.
A impossibilidade jurídica ou ilicitude do objeto se apresenta, claramente, na matéria em análise, posto que a penhorabilidade do bem de família não é acolhida pelo ordenamento jurídico em que casos que não se enquadrem nas hipóteses previstas para que a penhorabilidade do bem de família possa ocorrer.
Assim, conforme determina a Lei 8009/90, em seu artigo 1º, "o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei."
Considera-se, para tanto, como imóvel residencial, aquele que seja a única propriedade utilizada pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente (artigo 5º, Lei 8009/90).
Têm-se, pois, que as exceções à regra da impenhorabilidade, contidas no estatuto legal acima, tratam-se de hipóteses taxativamente descritas no artigo 3º e seus incisos, e uma vez que a dívida não se imiscua nestas hipóteses não será lícita a expropriação do bem de família.
Cumpre esclarecer, então, que o ato ou negócio que não preencha os requisitos de validade, trazidos pelo ordenamento jurídico, acha-se eivado de defeito grave, o que acarreta, conseqüentemente, o comprometimento de sua eficácia e reconhecimento. Trata-se, pois, o negócio contaminado de grave defeito, de negócio jurídico absolutamente nulo.
O Artigo 166 do Novel Código Civil é expresso ao determinar que:
Nota-se que a Lei 8009/90 veda expressamente a penhora de bem de família, portanto, o negócio jurídico, em debate, viola expressa disposição legal, subsumindo-se a hipótese do inciso II do artigo supra citado, posto que teve como fundamento objeto ilícito, ou seja, contrário à lei, e, ainda, o inciso VII, já que há expressa proibição da prática da penhora do bem de família.
Na visão de Caio Mário da Silva Pereira, "se o negócio for ilícito, descamba para o terreno daqueles fatos humanos insuscetíveis de criar direitos para o agente, sujeitando-o, porém, conforme a profundidade do ilícito, a ver apenas desfeito o negócio, ou ainda a reparar o dano que venha a atingir a esfera jurídica alheia. Quer isto dizer que a iliceidade do objeto ora conduz à invalidade do negócio, ora vai além, e impõe ao agente uma penalidade maior."(3)
Sabe-se, portanto, que é nulo o ato jurídico, quando em razão do defeito grave que o atinge, não pode produzir o efeito almejado. A nulidade se apresenta, portanto, como sanção para a ofensa à predeterminação legal.
A nulidade, neste caso, será insuprível pelo juiz, seja de ofício, seja a requerimento do interessado, não poderá, também, ser o ato ratificado, posto que jamais convalescerá.
Determinam os artigos 168, parágrafo único, e 169 do Código Civil, respectivamente, que:
Nessa linha de raciocínio, cumpre-nos analisar os efeitos da declaração de nulidade do negócio jurídico. Para Rodolfo Pamplona Filho, "por ser tratar de sentença proferida no bojo de ação declaratória de nulidade, salvo norma especial em sentido contrário, os seus efeitos retroagem até a data de realização do ato, invalidando-oab initio (efeitos ex tunc). Declarado nulo o ato, as partes restituir-se-ão ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente." (4)
De acordo com a norma contida no artigo 182 do Código Civil:
Ainda segundo Pamplona, "o bem de família é impenhorável, sendo excluído da execução por dívidas posteriores à sua instituição, ressalvadas as que provierem de tributos ou despesas condominiais relativas ao mesmo prédio." (5)
Em nosso socorro aproveita-se a lição de Theotônio Negrão:
"A alegação de que determinado bem é absolutamente impenhorável pode ser feita a todo tempo, mediante simples petição e independentemente de apresentação de embargos à execução, mas o devedor responde pelas custas de retardamento." (6)
No sentido de que o bem de família não poderá ser objeto de penhora e nem ao menos de transação, por se tratar de matéria regida por norma de caráter público e, por isso, insuscetível de disposição, João Roberto Parizzato estatui que:
"A penhora realizada sobre um bem de família é um ato ineficaz, por sua flagrante nulidade. Não pode o bem em questão ser oferecido à penhora pelo devedor. Trata-se de regra de caráter público, insuscetível, pois, de ser alterada pela pessoa que tenha instituído tal benefício"(7)
Nessa seara, é válido acrescentar a lição do mestre Pontes de Miranda:
"Os bens inalienáveis não podem ser penhorados, porque toda penhora implica tomada de eficácia do poder de dispor (abusus), e o devedor, dono desses bens não o tem."(8)
Na arguta opinião de César Fiúza:
"O objetivo do legislador foi o de garantir a cada indivíduo, quando nada, um teto onde morar mesmo que em detrimento dos credores. Em outras palavras, ninguém tem o direito de ‘jogar quem quer que seja na rua’ para satisfazer um crédito. Por isso o imóvel residencial foi considerado impenhorável. Trata-se, aqui, doprincípio da dignidade da pessoa humana. O valor ‘personalidade’ tem preeminência neste caso, devendo prevalecer em face de um direito de crédito inadimplido."(9)
Cumpre ressaltar a importância que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana assume no ordenamento jurídico, devendo-se entendê-lo não como forma supletiva das lacunas da lei, mas sim como fonte normativa, apta a exercer sua imperatividade e cogência nas relações jurídicas.
Com fincas à proteção da Pessoa Humana, a Carta Magna dispõe que:
Na emérita lição da ilustre professora Maria de Fátima Freire de Sá, "não podemos olvidar, portanto, que valores como liberdade, igualdade e dignidade foram erigidos à categoria de princípios constitucionais e referidos princípios incorporam as exigências de justiça, salvaguardando valores fundamentais."(10)
Nesta seara, seria interessante citar a opinião do autor Gustavo Tepedino ao afirmar que pretendeu o constituinte, ao fixar cláusula geral e "mediante o estabelecimento de princípios fundamentais introdutórios, definir uma nova ordem pública, da qual não se podem excluir as relações jurídicas privadas, que eleva ao ápice do ordenamento a tutela da pessoa humana, funcionalizando a atividade econômica privada aos valores existenciais e sociais ali definidos." (11)
Humberto Theodoro Júnior, ao descrever os princípios informativos do processo de execução, elucida de maneira brilhante a matéria:
"É aceito pela melhor doutrina e prevalece na jurisprudência o entendimento de que ‘a execução não deve levar o executado a uma situação incompatível com a dignidade humana.’ Não pode a execução ser utilizadacomo instrumento para causar a ruína, a fome e o desabrigo do devedor e sua família, gerando situações incompatíveis com a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, institui o código a impenhorabilidade de certos bens como provisões de alimentos, salários, instrumentos de trabalho, pensões, seguros de vida, etc."(12)
"(...)a execução deve ser útil ao credor, e, por isso, não se permite sua transformação em instrumento de simples castigo ou sacrifício do devedor."(13)
Ainda segundo Gustavo Tepedino, "a proteção dos direitos humanos, nos dias de hoje, reclama análise interdisciplinar, concita o intérprete a harmonizar fontes nacionais e supranacionais, reformula, em definitivo, o conceito de ordem pública, que se expande para os domínios da atividade econômica privada." (14)
Saliente-se, além da vasta opinião dos mais abalizados doutrinadores, acima transcritas, as decisões de eméritos tribunais pátrios no que concerne a vedação da prática da penhora do bem de família. Nesse sentido:
Resta-nos concluir, portanto, que o processo de execução não deve servir como instrumento de flagelo do devedor, posto que lhe devem ser assegurados os direitos básicos outorgados por lei, como o direito a ter moradia e, principalmente, o direito a ter uma vida digna, o que se restabelecerá, no caso presente, desconstituindo-se o ato pelo qual foi transacionado um bem de família, na medida em que se afigura direito indisponível, insuscetível de renúncia por parte de seu titular.
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